Pode ser a altura menos indicada para falar deste assunto, por estarmos em tempos de insuficiências de meios, mas a cultura, por ser parte integrante da identidade portuguesa, é um assunto de Estado muito sério.
Estava na noite de ontem a ver um programa de televisão, um programa que procura talentos, onde vários jovens vão a concurso para que um deles, de acordo com o número de telefonemas que correspondem a votos, possa ir para uma importante escola de música londrina formar-se.
Este programa é uma espécie de fast-food da cultura. É a cultura destinada às massas. É apenas um primeiro passo, que não deixa de ser o passo mais fácil porque os patrocínios estão garantidos pela facilidade com que o público chega a esse programa e pelo horário a que o mesmo se realiza.
Pensei ontem, a propósito de uma concorrente, que a vida é muito dura para muito boa gente. A concorrente não era uma das minhas preferidas, não cantava excepcionalmente bem, mas esforçou-se muito para passar à fase seguinte.
Pode não ser o caso daquela concorrente, mas, naqueles instantes em que se estava a decidir quem era expulso do programa, pensei que muitos milhares de jovens têm uma capacidade extraordinária para se afirmarem nos palcos desse país. Como cantores, como actores, como apresentadores, como entertainers, ou também como cineastas, como encenadores, como realizadores, seja como for.
A realidade é muito triste quando pensamos que muitos desses jovens não estão onde deveriam estar: em escolas de teatro, em escolas de música, em escolas de cinema ou outras escolas de arte focadas na formação de homens e mulheres da cultura portuguesa.
Muitos desses jovens têm, nestes concursos destinados, também ao nível dos concorrentes, às massas, a sua única oportunidade de mostrar o seu valor. Fazem-no a tremer, porque sabem que a oportunidade é única. E, depois de darem tudo o que têm, a maioria desses e dessas jovens não ficam. Porque têm o seu talento em bruto, ainda não trabalhado. A história das suas vidas, que não raras vezes inclui situações de pobreza ou problemas familiares muito graves, fá-los chorar quando ouvem um “não”. Porque esse “não” é um não definitivo.
Esses jovens, sejam rapazes ou raparigas, vão, muitos deles, fazer aqueles trabalhos ingratos que muitos de nós nem sequer valorizamos. Vão limpar as casas de banho dos centros comerciais, vão atender em lojas até que a sua idade lhes estrague a imagem. Muitos desses jovens não têm qualquer margem de ascensão social porque não têm oportunidades. E, em casos extremos, vão prostituir-se ou roubar.
Eu sei que este é um lado da cultura que é visível e que a cultura não se resume a programas de procura de talentos. Longe disso.
Mas o que queria dizer, trazendo este exemplo que me parece flagrante, é que este é assunto de Estado.
O Estado não pode continuar a ter uma política de cultura que se resume à distribuição de subsídios, que é discricionária e não pensa na consequência social da falta de uma política de cultura firme, responsável, que se assuma como porta-estandarte da defesa da Língua Portuguesa.
Não podemos exigir tudo ao Estado. Os privados têm, também aqui, uma tarefa fundamental.
Mas os privados têm descoberto, criado e formado grandes actores, reconhecidos a nível mundial. Os privados têm criado condições para que se continue a cantar ou também compor música em português. Os privados promovem, dentro das suas possibilidades, talentos desde tenra idade. Os privados trabalham-nos, metem-nos a actuar em público, mas, muitas vezes, o seu trabalho esbarra na ausência de uma política de cultura.
O Estado tem de fazer muito mais. Uma medida flagrante é impor às rádios que passem mais música portuguesa. Não custa dinheiro fazer isso. E é uma política que, além de cultural, é social e económica. Põe dinheiro a circular, cria riqueza e condições para que se multipliquem os artistas portugueses.
Existe possibilidade de regular, existe possibilidade de impor. Pois então que se faça isso. Com urgência.
Há, depois, outro campo que é o campo da formação, em que os privados, com sabedoria e qualificação, têm trabalhado muito e bem. Veja-se o exemplo das escolas de música com centenas de alunos. Ou mesmo o curso de Jazz da Universidade Lusíada, que penso ser uma inovação a este nível.
O Estado, neste aspecto, pode ir além de distribuir subsídios e criar algumas normas incentivadoras da formação. Os privados fazem os castings, encontram grandes actores, põem-nos em palco em peças que são de grande nível. Mas o Estado, por ser Português e porque Portugal é, sobretudo, cultura, pode ser muito mais ambicioso neste aspecto.
Se custa dinheiro? Sim, custa. Mas não é uma despesa. Antes será um investimento, criador de riqueza, promotor do princípio da igualdade e da mobilidade social.
Estamos, ainda, no domínio do básico, do que custa pouco. Muito pouco. Porque o preço a pagar é a assumpção de uma política de cultura e a racionalização dos recursos públicos.
Pode, o Estado, ir ainda mais longe, a um ponto onde os privados dificilmente podem chegar, que é o nível da construção de infra-estruturas que criem condições para a realização de espectáculos, infra-estruturas suficientemente atractivas para cativar público, incluindo os turistas estrangeiros.
Também custa dinheiro, mas terá retorno. Dá mais um ponto ao país no que respeita à capacidade para atrair turistas, cria riqueza, ajuda a economia, gera emprego. Promove a multiplicidade de espectáculos, abrangendo públicos diversos.
Estas infra-estruturas têm ainda um efeito importante, porque ajudam à criação e manutenção de cafés, lojas, restaurantes, bibliotecas, museus, além do evidente interesse do sector da hotelaria.
Criam dinâmica nas cidades ou nas localidades onde forem construídas.
Um exemplo flagrante do que o Estado não fez e deveria ter feito era o projecto de Frank Gehry para o Parque Mayer, em Lisboa, que não deixava de ser apenas uma das medidas culturais do Executivo Camarário de Pedro Santana Lopes.
O Parque Mayer não era um projecto final. Era um ponto de partida.
Estamos agora no campo das obras públicas. Em período de vacas magras, é certo. Mas já tivemos dois exemplos que vingaram, em Lisboa e no Porto, que são o CCB e a Casa da Música. Incluo aqui a recuperação de alguns teatros por todo o país e a construção de museus, que, não se destinando à promoção dos artistas, são ainda políticas de cultura. Políticas de cultura de sucesso!
Mas não deixam de ser ainda muito pouco para um país antigo e de cultura, que se quer moderno, que deseja ser ainda mais visitado, que sonha vir a materializar a ideia de que é um Estado Social também no campo da Cultura, criador de emprego e de riqueza, que oferece oportunidades e a garantia de possibilidade de mobilidade social, ao mesmo tempo em que deve surgir na vanguarda da defesa e divulgação da Língua Portuguesa no mundo.
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