sexta-feira, 30 de agosto de 2013
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
O escândalo de Bale
Ninguém tem dúvidas de que Bale é um grande jogador, que
desequilibra, que joga e faz jogar, que traz qualidade ao jogo, que marca e dá
a marcar, fazendo a diferença. Mas Bale é galês, joga no Tottenham, que, apesar
de ter uma belíssima equipa que foi construída nos últimos cinco anos, “está a
milhas” dos principais colossos europeus.
Por muito bom que seja, Bale valerá metade do que vale
Messi, metade do que vale Ronaldo. Valerá, talvez, pouco mais do que vale Di
Maria, valor que terá, neste momento, apenas por estar numa equipa com menor
dimensão, sendo, por esse motivo, mais decisivo do que, previsivelmente,
poderia ser numa equipa de maior nomeada.
Não sendo certo que a transferência venha mesmo a
consumar-se, colocar-se a hipótese de haver um clube com um passivo milionário,
de um país que vive uma crise profundíssima, disposto a pagar uma centena de
milhões de euros por Bale é um escândalo universal.
Outro escândalo, da mesma dimensão, é o facto de Platini
dizer publicamente que pensa que o valor é perfeitamente normal, ignorando a
real situação financeira do Real Madrid (que está muito distante dos milhões virtuais que esse clube, anualmente, queima em falsos reforços), a situação económica espanhola e a
profunda crise que persistentemente assola o continente europeu.
Bale não vale cem milhões. É inaceitável que se possa pensar
que possa valer mais do que esses cem milhões. Ou que valha pouco menos de cem
milhões mais jogadores ou outras contrapartidas.
A novela “Bale”, que marca este período de transferência,
apenas tem o mérito de demonstrar, aos jovens, o exemplo que ninguém deve
seguir, porque, além de ser condenável que se ofereça esta fortuna em tempos de
crise, com o apoio dos principais responsáveis por essa atividade profissional,
a atitude do internacional galês – que nunca chegará aos pés dos melhores
jogadores do mundo – é de repudiar com veemência.
Faltar ao trabalho, incumprir o contrato, forçar a saída de
um clube que tudo lhe deu é um ato vergonhoso, constituindo um sinal de
absoluta falta de profissionalismo, que se está a alastrar por todos os clubes
de todos os campeonatos, e que merece reprovação por parte de todos os agentes
desportivos, por todos os agentes não desportivos, por todos os cidadãos do
mundo.
Talvez haja motivos para desafiar a Judite Sousa, que, nesta
fase da sua vida profissional, não está “a dar uma para a caixa”, a entrevistar o Florentino Pérez,
sugerindo-lhe que, em vez de pagar estes milhões por quem não os vale, o clube
merengue distribua essa quantia obscena pelos pobres que há no mundo,
começando, claro está, pelos milhões de desempregados espanhóis.
terça-feira, 27 de agosto de 2013
Outra ameaça à paz mundial
O mundo é pequeno e começa a
ficar cada vez mais perigoso. Não falo das tendências cada vez mais autoritárias
que os alemães têm mantido em relação a uma Europa contra quem, noutros tempos,
já combateram, tendo precisado da ajuda daquela para se reerguer enquanto país,
e enquanto potência económica. Não me refiro, também, à constante frieza russa,
país cuja relação tenta ser preservada, por todos os países, de uma forma
sempre delicada. Também não refiro à persistente ameaça norte-coreana, país
que, isolado do mundo moderno, continua a intimidar a mais poderosa potência
económica.
A situação na Síria não faz
adivinhar nada de bom para uma Europa que continua a não sair da cepa torta,
que estagnou e, sem saber o que quer de si própria, continua a falar através de
várias e diferentes vozes. Um ataque na Síria, com fundamentos semelhantes aos
que desencadearam a guerra no Iraque, seria também ruinoso para os Estados
Unidos, cuja economia continua com enormes dificuldades, sendo previsivelmente
superada pelo dinamismo chinês, ainda que seja construído através de sucessivos
ataques à dignidade da vida humana.
Não sei o que fundamentou o
cancelamento unilatera
l (pelos Estados Unidos) do encontro que estava previsto
realizar-se com a Rússia, em Haia. Não sei, também, se existe algum fundamento
para crer que houve um ataque feito através de armas químicas na Síria. Mas
parece-me que, ainda para mais na atual conjuntura económico-financeira, os
Estados Unidos e os seus aliados europeus deveriam ser mais prudentes
relativamente a uma eventual intervenção militar no país liderado por Bashar
al-Assad.
É perfeitamente compreensível,
para o comum ocidental, que os Estados queiram reprimir o “uso” de civis
inocentes para desencadear um ataque químico que mata indiscriminadamente. É,
também, compreensível que se repudie o atraso sírio em aceitar o pedido da comunidade
internacional de permitir o acesso de inspetores das Nações Unidas ao local
onde o referido ataque alegadamente terá ocorrido.
Impulsivamente, a posição dos
Estados Unidos ficou mais dura, havendo uma pressão de alguns congressistas no
sentido de enviar navios para a Síria para atacar o território através de
mísseis. A má vontade, que me parece ser inequívoca, por parte dos sírios,
ajuda a esse impulso.
Todavia, numa altura em que
persiste o medo relativamente a ameaças permanentes, como a russa ou a
norte-coreana, mas também de movimentos islâmicos radicais, há que ser
especialmente cauteloso com a questão da Síria, sobretudo após os avisos do Irão
e da China, que apontam para retaliações em caso de ataque.
O cenário que ficou montado com o
alegado ataque químico era totalmente indesejável pela comunidade
internacional, mas, depois da “agressividade” na forma como os norte-americanos
disseram que esse ataque era indesmentível, defendendo-se um ataque imediato ao
território sírio, não pode deixar de se ter em conta os avisos ameaçadores do
Irão e da China.
A bola está no lado de Obama, que
tem finalmente a sua prova de fogo, e a quem cabe evitar (ou não) um ataque que
pode ter consequências gravíssimas, sobretudo na atual conjuntura, para os
Estados Unidos e para os aliados ocidentais e que, a ocorrer, terá certamente repercussões,
também, em Portugal.
Veremos o que nos dirão os
próximos capítulos, com a expectativa de quem receia que esta história, que
começou torta, possa não acabar direita.
As minhas autárquicas
A pouco mais de um mês das
eleições autárquicas, os mares ainda estão calmos, porventura demasiadamente
calmos, tendo em conta o facto de estas serem as eleições que, pelo menos em
teoria, vão fazer uma verdadeira revolução no poder local.
Em tempos, escrevi, neste blogue,
que discordo, em absoluto, da forma adotada pelo PSD para a composição das
listas, tendo desaproveitado uma oportunidade única para renovar, renovar a
sério o poder local, abdicando dos dinossauros que marcaram um período em que o
mapa autárquico esteve pintado em tons de laranja, com saldo positivo e obra
feita.
A participação cívica e política
deve, no meu entendimento, pautar-se por uma lógica de meritocracia, de
reconhecimento público do trabalho desempenhado (fora do poder autárquico) pelo
candidato, sendo essas algumas das razões que me fazem defender a não
eternização nos cargos e a rotatividade que, a meu ver, é totalmente desejável
no sentido de preservar uma democracia plena e saudável.
A lei, quando não é totalmente
clara, é suscetível de ser interpretada, mas não podemos esquecer que a lei é
feita por homens, sendo redigida em resultado do pensamento maioritário – neste
caso, pensamento político – de vontades livres. Se é questionável o espírito do
legislador, não deveria ser, por uma questão de sensatez, igualmente
questionável aquela que deveria ser a sua vontade. A perpetuidade num
determinado cargo público (ainda que alternando o local) é ruinosa para a nossa
democracia e, pior do que isso, é um contributo enorme para abalar ainda mais a
confiança que os portugueses deixaram de ter nela.
O meu apoio, ou a falta dele, em
algumas candidaturas não se justifica por uma questão pessoal, nem por uma
questão partidária. É por uma questão de acreditar em determinados princípios
orientadores que possam contribuir para uma democracia mais saudável.
Aliás, como militante do PSD,
como social-democrata, revejo-me em muitas das ideias que Seara ou Menezes
partilham. Tendencialmente, em circunstâncias normais, votaria sempre num
candidato do PSD.
Porém, as razões que descrevi, e
os termos em que foram descritas, impedir-me-iam de apoiar os candidatos “salta-pocinhas”,
que, impedidos legalmente de se recandidatar à presidência de determinado
concelho, contornam a lei e candidatam-se a outras Câmaras Municipais, algumas
delas limítrofes da anterior, apenas afastadas por uma estrada, por um rio, por
uma ponte.
Nas circunstâncias em que se
apresentam estas candidaturas, se fosse eleitor em Lisboa, não votaria em Seara.
Se fosse eleitor no Porto, não votaria em Luís Filipe Menezes.
Apesar de não gostar da forma
demasiado populista como tenta ganhar cada voto, não hesitaria, perante as
candidaturas existentes, em votar no António Costa. De um ponto de vista
global, fez um trabalho positivo, apenas superado pelo empreendedorismo de
Santana Lopes. Costa demorou a arrancar, mas Lisboa está mais bonita, na antiga
Musgueira, nos jardins do Campo Grande, vai ficar mais bonita no Terreiro do
Paço e talvez até tenha ficado mais exuberante e funcional na Avenida da
Liberdade e na zona do Marquês. Reconheço, porém, que a oposição construtiva
que Costa teve foi um contributo fundamental, que ajudou a cidade a recuperar o
seu esplendor.
No Porto, a questão é diferente.
Votaria em Rui Moreira, pela outra explicação que acima já dei. Vem da
sociedade civil, de um grupo de pessoas com competência e capacidade, que
merece ser premiado. Além do mais, é do Porto.
Noutros municípios, votaria
claramente no PSD, como na Figueira da Foz, Albufeira, Benavente, Oliveira de
Azeméis, Braga, Guarda, Cascais, Vila Franca de Xira, Montemor, Santarém e, em
geral, em quase todos os outros.
Uma das exceções é a de Sintra. Penso
que Marco Almeida fez um trabalho notável, que me parece ser reconhecido pelos
sintrenses, merecendo a oportunidade de liderar os destinos da autarquia
durante, pelo menos, dois mandatos. Se fosse eleitor em Sintra, não hesitaria
em votar no movimento independente encabeçado pelo Marco Almeida.
Como Oeirense, reconheço que,
neste ano, a escolha se dificulta. Parecendo-me evidente que o candidato do PS
será esmagado nas urnas, a escolha resume-se à opção entre Moita Flores, do
PSD, e Paulo Vistas, no IOMAF.
Sendo militante do PSD, nunca
hesitei em pensar pela minha cabeça. Temos o direito, mas também o dever, de
ter convicções. Temos o direito a engraçar ou não engraçar, a rever-nos ou a
não nos revermos, temos até a possibilidade de apenas não ir com a cara. O que
digo é totalmente de uma perspetiva pessoal, mas, ainda hesitante, o tempo
começa a escassear-se. Por esse motivo, e pelo excecional trabalho que foi
feito em Oeiras, começa a ganhar força a probabilidade de votar no Paulo
Vistas.
Confesso que ainda não conheço (ou
não sei quais são) os candidatos à minha Junta de Freguesia, reservando essa
decisão para a altura em que os conhecer.
Distante da realidade do partido,
totalmente descomprometido perante qualquer candidatura, tenho sentido que me
tenho tornado cada vez mais livre. Confesso que, pela estima que tenho pelo
Marco Almeida, apenas a sua candidatura me deixa mais expectativas, sendo,
inclusivamente, bastante provável que eu participe nas suas ações de campanha,
contribuindo, com aquilo que puder, para a vitória que não tenho dúvidas que
ele merece, e que certamente acabará por conseguir.
Como social-democrata militante,
e apesar das considerações que repito neste texto, não deixo de desejar que o
PSD consiga vencer as autárquicas, por duas razões fundamentais: para preservar
a estabilidade na governação do país e para premiar o trabalho brioso que foi
desempenhado pelos autarcas social-democratas de norte a sul do continente e
nas ilhas.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
No fim do pesadelo
Foi com uma onda de fumo, que se
via de Lisboa, que me apercebi da dimensão da tragédia que tornava assombroso
um cenário que, até então, se assemelhava a um pequeno paraíso terreno.
À chegada, obtive a confirmação,
constatando que um imenso mar de fogo estava de passagem pela Formiga.
Confesso, porém, que fiquei com a
primeira sensação de que tudo estava a controlar-se. Apesar das várias frentes,
os poucos bombeiros presentes no local e a segurança, quase leviandade, com que
se deslocavam dentro da herdade, não se orientando pelos conselhos que eu e o caseiro
lhes dávamos – no sentido de lhes indicar os melhores acessos e de explicar o
estado do terreno – faziam-me crer que os estragos se ficariam por ali.
Aliás, na altura em que cheguei,
as chamas estavam a alastrar-se junto a uma vala e a uma zona de pasto que não
tinha mato. Seria, do meu ponto de vista (de alguém desqualificado para este
tipo de situações), improvável que se multiplicasse o número de frentes e que o
fogo tomasse conta de outros locais dentro da herdade.
Essa sensação de controlo não me
tirou a preocupação. Conhecendo cada canto e recanto, meti-me num jipe com o
caseiro, fomos dar uma volta pela herdade para ver o estado das coisas, numa
altura em que ardia de um lado e do outro da A13, que corta a herdade ao meio.
A meio da herdade, existe um
túnel, contrapartida pela expropriação originada pela construção da A13 e que
serve, além de acesso interno e privado, para a passagem do gado. Esse túnel
está junto a uma pequena barragem, numa zona que, como todo o resto da herdade,
tem vários socalcos. Com o portão aberto, para facultar a circulação dos
bombeiros, passámos para o outro lado e vimos até onde pudemos ver.
O estado de pânico começou quando
queríamos regressar a casa. Junto à barragem, começou uma nova frente de fogo,
que praticamente nos cercou. Entre o mato e os sobreiros, formou-se uma parede
que nos impediu de seguir em frente e nos forçou a alterar o trajeto.
Não era possível chegar a casa,
nem às cocheiras, sem que tivéssemos de sair pelo segundo portão, seguindo pela
Estrada Nacional, passando por fora da herdade. Foi o que fizemos.
Nesse momento, tudo de
descontrolou. O que, à chegada, estava controlado e localizado ficou
descontrolado, começando a adivinhar-se o pior. Foi nessa altura que, exaltado,
saí do carro e tentei explicar aos bombeiros que o fogo estava a avançar por
uma zona que, apesar de estar junto a uma vala cheia de água, estava seca. Se
passasse daquele local, veríamos, dentro de minutos, o fogo tomar conta dos
barracões, das cavalariças e da casa.
O meu aviso foi seguido,
tendo-se formado um “muro de combate ao incêndio” que o impediu de se alastrar,
evitando que chegasse à zona das cavalariças.
Nessa altura, avisei, também, que
os socalcos existentes na zona, bem como algum mato (que não corresponde a
qualquer incumprimento da lei e que, se fosse cortado, poderia matar vários
sobreiros), fariam com que, se as chamas passassem daquele local, em minutos, a
casa estivesse a arder.
Não havia tempo a perder. Pus-me
no carro e, antes de ir a casa, fui ao parque junto à casa, que ainda não
ardia, para soltar quatro poldros que ali estavam. Num instinto de
sobrevivência, efetivamente milagroso, os poldros correram na minha direção
logo os chamei, passando de um portão para o outro sem hesitar. Saíram daquele
local em segundos, numa altura em que esse parque começou a ser consumido pelas
chamas.
O tempo começava a escassear. Eu
sabia que, em circunstâncias normais, dentro de três ou, com alguma sorte,
quatro ou cinco minutos, a casa estaria a arder, sem que houvesse um único
bombeiro no local.
Por sorte, era terça-feira. A
Eugénia, que ali vai nesses dias da semana para limpar a casa, estava ali.
Regou, com uma pequena mangueira, toda a zona junto à casa. Gritei, chamei os
bombeiros para o local, abri todos os portões, fui até casa e liguei a rega.
À medida que acelerava a força
devoradora de um fogo imensamente brutal, o tempo para o combater começava a tornar-se cada
vez mais curto. Foi aí que, finalmente, mas com toda a calma, chegou a primeira
de três ou quatro carrinhas de bombeiros.
Não é possível descrever os cinco
minutos seguintes, porque não há explicação para o desespero. O ar ficou irrespirável,
o calor insuportável, a casa foi assaltada por um gigantesco fumo cinzento. Uma
chama quase me engoliu numa altura em que eu estava junto a um depósito de água
situado atrás do balneário para onde me dirigi, a pedido dos bombeiros, para
desligar a rega.
Confesso que não sei como é que a
casa não ardeu. Não sei como é que os balneários ficaram intactos.
A determinada altura, a casa ficou sem
água e sem eletricidade. Instintivamente, quando fui ligar a rega, abri a
piscina (normalmente protegida por uma cobertura). Foi o que serviu para
colmatar a falta de água dos carros de bombeiros, que se serviram daquela água
para apagar o resto das chamas.
Num ápice, o fogo circundava toda
a casa, desde os balneários à zona da piscina, passando pelas traseiras, pela
casa do caseiro, a que se somaram pequenos focos de incêndio junto ao portão e
ao relvado. Nessa altura, temi o pior. O fumo tornava impossível a visão de
parte da casa. Os bombeiros recuaram e eu próprio, vomitando a desidratação
que, entretanto, comecei a sentir, fui até casa buscar garrafas de água para os
bombeiros. Fui até casa do caseiro, que tinha a porta aberta e estava mais
fresca.
Nessa altura, começou a arder por
trás dessa casa, chamei os bombeiros, que apagaram imediatamente aquele fogo.
Entretanto, o incêndio tinha passado entre os barracões até ao fim da herdade,
tendo consumido uma diagonal completa que arrasou sobreiros e centenas de espécies de
seres vivos.
Aquela gigante nuvem negra transformou-se,
entretanto, num conjunto disperso de nuvens cinzentas, graças a cerca de
duzentos bombeiros, cinco tratoristas, o senhor Carlos, o senhor Leonel, o
Luís, o senhor Zé Afonso e a Eugénia.
Não estando, ainda, completamente aliviado, nem tendo qualquer sentimento que se assemelhasse àquele que se tem em
situações de controlo e de vitória, olhei à volta e, pelo menos com maior
controlo sobre o meu estado de desespero, lembro-me de, entre ordens, ter
abraçado o comandante dos Bombeiros do Cartaxo.
Em cada homem, em cada rapaz e
rapariga, vi um herói. Entre lágrimas, a calma chegou, finalmente, aos homens
exaustos, quando a noite chegou.
Passou uma semana desde esse
incidente e, confesso, ainda hoje tenho dificuldades em dormir. Acordo
sobressaltado a meio da noite. As pulsações ainda estão demasiadamente aceleradas
para poder descansar.
No dia seguinte ao incêndio, no
dia seguinte ao seguinte, nos dias seguintes a esse, dei sozinho várias voltas
à herdade, não para fazer contas aos estragos, não para me deprimir no meio de
um cenário que de paradisíaco se tornou lunar, mas para beber um pouco da força
da resistência.
Ardeu metade da Formiga. Centenas
de sobreiros ficaram queimados. O que era verde e amarelo ficou preto e
cinzento. O cheiro fresco dos eucaliptos tornou-se pesado. O canto dos pássaros
transformou-se num ruidoso e aflitivo silêncio. O cenário tornou-se desolador e
penoso.
Penso que vivemos, os que
estávamos na Formiga, uma espécie de guerra. E, numa guerra, até os vencedores
perdem.
O que me fascina, na Formiga, é a
biodiversidade. É a dignidade da vida dos toiros e das vacas. É a excelência e
o carácter daqueles cavalos e poldros, a quem, com esforço e trabalho, dou de
comer. É a sabedoria das corujas, a imponência dos milhafres, o passo
desengonçado dos javalis, a rapidez dos coelhos, a ratice da raposa e a “rasteirice”
dos saca-rabos, a pureza dos pássaros, a calma das cegonhas, o canto das rãs. É
a história que cada sobreiro tem para contar.
É por isso que aquele local é
único. É isso que me acalma do stress do quotidiano.
No último grande passeio que dei,
dois dias após o fogo, com o cheiro das cinzas, e apesar de não me tirar o
sentimento de algum pânico e sobressalto que ainda mantenho, senti a verdadeira força
da natureza, da resistência perante o que foi a intensidade brutal de um mar
devastador de fogo.
Fiquei com a esperança de que
parte dos sobreiros ardidos ainda vai recuperar. Não acredito que a (Herdade
da) Formiga tenha esse nome apenas por causa dos milhões de seres dessa espécie
que, dia e noite, de verão a verão, ali trabalha para viver com dignidade.
Ali, todos somos formigas,
inerentemente apaixonados pela vida, coligados num governo de salvação de toda
a vida que pudermos salvaguardar.
Nesse dia, entre o trote do Puro
Sangue Lusitano que montava e o galope desarticulado e rápido da Cão de Gado
Transmontano que comprei no inverno passado, já ouvia, ainda que de forma
envergonhada, o canto afinado dos pássaros. A mãe cegonha sobrevoava a várzea à
procura de alimento para a cegonha bebé. O casal de milhafres voltou. As vacas,
com os vitelos ainda novos, comem feno de forma digna e serena. Os cavalos
estão calmos, pedem por passeios. Os poldros estão deitados junto aos novilhos
e, entre eles, de forma sábia e matreira, está a raposa, numa altura em que os coelhos já saem da toca.
Pressinto que, entre todos
aqueles animais, existe o medo que o faz estar juntos, mas a confiança de que,
finalmente, a situação se está a normalizar.
Não temos qualquer sentimento de
vitória. Mas o sentimento de derrota não se sobrepõe à imensa esperança de
reerguer cada sobreiro, de revitalizar os sobreiros que, até à próxima primavera,
tudo farão pela sobrevivência.
Temos, isso sim, conforto. Todos.
Todos os que fomos, e somos, formigas. Todos os que, perante o maior susto da
vida, tudo fizemos para salvar a vida uns dos outros.
A natureza, e a biodiversidade
que cultivamos, sofreu apenas um duro e cruel revés, mas não há nada mais belo
e mágico do que o pequeno conforto de sentir que a vida, naquilo que foi
possível, resistiu.
Na tentativa de virar esta
página, realmente negra da nossa vida, resta-me desejar que este dia seja
recordado, não pelo que aconteceu, mas pelo que se evitou que acontecesse, e
que nunca seria possível sem a ajuda das pessoas que referi, da solidariedade
dos bombeiros, dos tratoristas da Companhia das Lezírias, da Proteção Civil, de
cada bombeiro que ali esteve. Também não seria possível sem o instinto de
sobrevivência de cada animal e sem a Sorte, a que apelei em desespero, e que
veio dos Céus.
Tendo vivido a situação desde o
momento em que o incêndio se descontrolou, e visto a forma como o fogo devorou
toda a zona junto à casa, só posso acreditar que foi a Mãe que protegeu a vida
que o Pai criou.
É só mesmo por causa disso que,
cansado mas com esperança, posso finalmente dizer que o pior já passou, que
tudo poderia ter sido muito pior, e que, com felicidade, podemos dizer que
seguimos. Que seguimos, vivendo.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Foi há 10 anos, e eu estive lá.
O dia há-de nascer,
Rasgar a escuridão,
Fazer o sonho amanhecer
Ao som da canção
E então:
O amor há de vencer
A alma libertar
Mil fogos ardem sem se ver
Na luz do nosso olhar,
Na luz do nosso olhar!
Um dia há de se ouvir
O cântico final,
Porque afinal falta cumprir
O amor a Portugal,
O amor a Portugal!
(Letra da música cantada por Dulce Pontes, na inauguração do novo Estádio José de Alvalade, há precisamente 10 anos, num dos momentos mais arrepiantes e bonitos que vivi em toda a vida.)
Subscrever:
Mensagens (Atom)