Foi com uma onda de fumo, que se
via de Lisboa, que me apercebi da dimensão da tragédia que tornava assombroso
um cenário que, até então, se assemelhava a um pequeno paraíso terreno.
À chegada, obtive a confirmação,
constatando que um imenso mar de fogo estava de passagem pela Formiga.
Confesso, porém, que fiquei com a
primeira sensação de que tudo estava a controlar-se. Apesar das várias frentes,
os poucos bombeiros presentes no local e a segurança, quase leviandade, com que
se deslocavam dentro da herdade, não se orientando pelos conselhos que eu e o caseiro
lhes dávamos – no sentido de lhes indicar os melhores acessos e de explicar o
estado do terreno – faziam-me crer que os estragos se ficariam por ali.
Aliás, na altura em que cheguei,
as chamas estavam a alastrar-se junto a uma vala e a uma zona de pasto que não
tinha mato. Seria, do meu ponto de vista (de alguém desqualificado para este
tipo de situações), improvável que se multiplicasse o número de frentes e que o
fogo tomasse conta de outros locais dentro da herdade.
Essa sensação de controlo não me
tirou a preocupação. Conhecendo cada canto e recanto, meti-me num jipe com o
caseiro, fomos dar uma volta pela herdade para ver o estado das coisas, numa
altura em que ardia de um lado e do outro da A13, que corta a herdade ao meio.
A meio da herdade, existe um
túnel, contrapartida pela expropriação originada pela construção da A13 e que
serve, além de acesso interno e privado, para a passagem do gado. Esse túnel
está junto a uma pequena barragem, numa zona que, como todo o resto da herdade,
tem vários socalcos. Com o portão aberto, para facultar a circulação dos
bombeiros, passámos para o outro lado e vimos até onde pudemos ver.
O estado de pânico começou quando
queríamos regressar a casa. Junto à barragem, começou uma nova frente de fogo,
que praticamente nos cercou. Entre o mato e os sobreiros, formou-se uma parede
que nos impediu de seguir em frente e nos forçou a alterar o trajeto.
Não era possível chegar a casa,
nem às cocheiras, sem que tivéssemos de sair pelo segundo portão, seguindo pela
Estrada Nacional, passando por fora da herdade. Foi o que fizemos.
Nesse momento, tudo de
descontrolou. O que, à chegada, estava controlado e localizado ficou
descontrolado, começando a adivinhar-se o pior. Foi nessa altura que, exaltado,
saí do carro e tentei explicar aos bombeiros que o fogo estava a avançar por
uma zona que, apesar de estar junto a uma vala cheia de água, estava seca. Se
passasse daquele local, veríamos, dentro de minutos, o fogo tomar conta dos
barracões, das cavalariças e da casa.
O meu aviso foi seguido,
tendo-se formado um “muro de combate ao incêndio” que o impediu de se alastrar,
evitando que chegasse à zona das cavalariças.
Nessa altura, avisei, também, que
os socalcos existentes na zona, bem como algum mato (que não corresponde a
qualquer incumprimento da lei e que, se fosse cortado, poderia matar vários
sobreiros), fariam com que, se as chamas passassem daquele local, em minutos, a
casa estivesse a arder.
Não havia tempo a perder. Pus-me
no carro e, antes de ir a casa, fui ao parque junto à casa, que ainda não
ardia, para soltar quatro poldros que ali estavam. Num instinto de
sobrevivência, efetivamente milagroso, os poldros correram na minha direção
logo os chamei, passando de um portão para o outro sem hesitar. Saíram daquele
local em segundos, numa altura em que esse parque começou a ser consumido pelas
chamas.
O tempo começava a escassear. Eu
sabia que, em circunstâncias normais, dentro de três ou, com alguma sorte,
quatro ou cinco minutos, a casa estaria a arder, sem que houvesse um único
bombeiro no local.
Por sorte, era terça-feira. A
Eugénia, que ali vai nesses dias da semana para limpar a casa, estava ali.
Regou, com uma pequena mangueira, toda a zona junto à casa. Gritei, chamei os
bombeiros para o local, abri todos os portões, fui até casa e liguei a rega.
À medida que acelerava a força
devoradora de um fogo imensamente brutal, o tempo para o combater começava a tornar-se cada
vez mais curto. Foi aí que, finalmente, mas com toda a calma, chegou a primeira
de três ou quatro carrinhas de bombeiros.
Não é possível descrever os cinco
minutos seguintes, porque não há explicação para o desespero. O ar ficou irrespirável,
o calor insuportável, a casa foi assaltada por um gigantesco fumo cinzento. Uma
chama quase me engoliu numa altura em que eu estava junto a um depósito de água
situado atrás do balneário para onde me dirigi, a pedido dos bombeiros, para
desligar a rega.
Confesso que não sei como é que a
casa não ardeu. Não sei como é que os balneários ficaram intactos.
A determinada altura, a casa ficou sem
água e sem eletricidade. Instintivamente, quando fui ligar a rega, abri a
piscina (normalmente protegida por uma cobertura). Foi o que serviu para
colmatar a falta de água dos carros de bombeiros, que se serviram daquela água
para apagar o resto das chamas.
Num ápice, o fogo circundava toda
a casa, desde os balneários à zona da piscina, passando pelas traseiras, pela
casa do caseiro, a que se somaram pequenos focos de incêndio junto ao portão e
ao relvado. Nessa altura, temi o pior. O fumo tornava impossível a visão de
parte da casa. Os bombeiros recuaram e eu próprio, vomitando a desidratação
que, entretanto, comecei a sentir, fui até casa buscar garrafas de água para os
bombeiros. Fui até casa do caseiro, que tinha a porta aberta e estava mais
fresca.
Nessa altura, começou a arder por
trás dessa casa, chamei os bombeiros, que apagaram imediatamente aquele fogo.
Entretanto, o incêndio tinha passado entre os barracões até ao fim da herdade,
tendo consumido uma diagonal completa que arrasou sobreiros e centenas de espécies de
seres vivos.
Aquela gigante nuvem negra transformou-se,
entretanto, num conjunto disperso de nuvens cinzentas, graças a cerca de
duzentos bombeiros, cinco tratoristas, o senhor Carlos, o senhor Leonel, o
Luís, o senhor Zé Afonso e a Eugénia.
Não estando, ainda, completamente aliviado, nem tendo qualquer sentimento que se assemelhasse àquele que se tem em
situações de controlo e de vitória, olhei à volta e, pelo menos com maior
controlo sobre o meu estado de desespero, lembro-me de, entre ordens, ter
abraçado o comandante dos Bombeiros do Cartaxo.
Em cada homem, em cada rapaz e
rapariga, vi um herói. Entre lágrimas, a calma chegou, finalmente, aos homens
exaustos, quando a noite chegou.
Passou uma semana desde esse
incidente e, confesso, ainda hoje tenho dificuldades em dormir. Acordo
sobressaltado a meio da noite. As pulsações ainda estão demasiadamente aceleradas
para poder descansar.
No dia seguinte ao incêndio, no
dia seguinte ao seguinte, nos dias seguintes a esse, dei sozinho várias voltas
à herdade, não para fazer contas aos estragos, não para me deprimir no meio de
um cenário que de paradisíaco se tornou lunar, mas para beber um pouco da força
da resistência.
Ardeu metade da Formiga. Centenas
de sobreiros ficaram queimados. O que era verde e amarelo ficou preto e
cinzento. O cheiro fresco dos eucaliptos tornou-se pesado. O canto dos pássaros
transformou-se num ruidoso e aflitivo silêncio. O cenário tornou-se desolador e
penoso.
Penso que vivemos, os que
estávamos na Formiga, uma espécie de guerra. E, numa guerra, até os vencedores
perdem.
O que me fascina, na Formiga, é a
biodiversidade. É a dignidade da vida dos toiros e das vacas. É a excelência e
o carácter daqueles cavalos e poldros, a quem, com esforço e trabalho, dou de
comer. É a sabedoria das corujas, a imponência dos milhafres, o passo
desengonçado dos javalis, a rapidez dos coelhos, a ratice da raposa e a “rasteirice”
dos saca-rabos, a pureza dos pássaros, a calma das cegonhas, o canto das rãs. É
a história que cada sobreiro tem para contar.
É por isso que aquele local é
único. É isso que me acalma do stress do quotidiano.
No último grande passeio que dei,
dois dias após o fogo, com o cheiro das cinzas, e apesar de não me tirar o
sentimento de algum pânico e sobressalto que ainda mantenho, senti a verdadeira força
da natureza, da resistência perante o que foi a intensidade brutal de um mar
devastador de fogo.
Fiquei com a esperança de que
parte dos sobreiros ardidos ainda vai recuperar. Não acredito que a (Herdade
da) Formiga tenha esse nome apenas por causa dos milhões de seres dessa espécie
que, dia e noite, de verão a verão, ali trabalha para viver com dignidade.
Ali, todos somos formigas,
inerentemente apaixonados pela vida, coligados num governo de salvação de toda
a vida que pudermos salvaguardar.
Nesse dia, entre o trote do Puro
Sangue Lusitano que montava e o galope desarticulado e rápido da Cão de Gado
Transmontano que comprei no inverno passado, já ouvia, ainda que de forma
envergonhada, o canto afinado dos pássaros. A mãe cegonha sobrevoava a várzea à
procura de alimento para a cegonha bebé. O casal de milhafres voltou. As vacas,
com os vitelos ainda novos, comem feno de forma digna e serena. Os cavalos
estão calmos, pedem por passeios. Os poldros estão deitados junto aos novilhos
e, entre eles, de forma sábia e matreira, está a raposa, numa altura em que os coelhos já saem da toca.
Pressinto que, entre todos
aqueles animais, existe o medo que o faz estar juntos, mas a confiança de que,
finalmente, a situação se está a normalizar.
Não temos qualquer sentimento de
vitória. Mas o sentimento de derrota não se sobrepõe à imensa esperança de
reerguer cada sobreiro, de revitalizar os sobreiros que, até à próxima primavera,
tudo farão pela sobrevivência.
Temos, isso sim, conforto. Todos.
Todos os que fomos, e somos, formigas. Todos os que, perante o maior susto da
vida, tudo fizemos para salvar a vida uns dos outros.
A natureza, e a biodiversidade
que cultivamos, sofreu apenas um duro e cruel revés, mas não há nada mais belo
e mágico do que o pequeno conforto de sentir que a vida, naquilo que foi
possível, resistiu.
Na tentativa de virar esta
página, realmente negra da nossa vida, resta-me desejar que este dia seja
recordado, não pelo que aconteceu, mas pelo que se evitou que acontecesse, e
que nunca seria possível sem a ajuda das pessoas que referi, da solidariedade
dos bombeiros, dos tratoristas da Companhia das Lezírias, da Proteção Civil, de
cada bombeiro que ali esteve. Também não seria possível sem o instinto de
sobrevivência de cada animal e sem a Sorte, a que apelei em desespero, e que
veio dos Céus.
Tendo vivido a situação desde o
momento em que o incêndio se descontrolou, e visto a forma como o fogo devorou
toda a zona junto à casa, só posso acreditar que foi a Mãe que protegeu a vida
que o Pai criou.
É só mesmo por causa disso que,
cansado mas com esperança, posso finalmente dizer que o pior já passou, que
tudo poderia ter sido muito pior, e que, com felicidade, podemos dizer que
seguimos. Que seguimos, vivendo.
2 comentários:
valente António ! o que nao é de estranhar vindo de um LC de mão cheia! Parabéns! Temos escritor e temos amor à terra! assim é que é!!
MJLC
Parabens! Temos escritor e temos um valente amor à terra!! Vamos em frente ! o combarte segue!
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