segunda-feira, 26 de agosto de 2013

No fim do pesadelo


Foi com uma onda de fumo, que se via de Lisboa, que me apercebi da dimensão da tragédia que tornava assombroso um cenário que, até então, se assemelhava a um pequeno paraíso terreno.
À chegada, obtive a confirmação, constatando que um imenso mar de fogo estava de passagem pela Formiga.
Confesso, porém, que fiquei com a primeira sensação de que tudo estava a controlar-se. Apesar das várias frentes, os poucos bombeiros presentes no local e a segurança, quase leviandade, com que se deslocavam dentro da herdade, não se orientando pelos conselhos que eu e o caseiro lhes dávamos – no sentido de lhes indicar os melhores acessos e de explicar o estado do terreno – faziam-me crer que os estragos se ficariam por ali.
Aliás, na altura em que cheguei, as chamas estavam a alastrar-se junto a uma vala e a uma zona de pasto que não tinha mato. Seria, do meu ponto de vista (de alguém desqualificado para este tipo de situações), improvável que se multiplicasse o número de frentes e que o fogo tomasse conta de outros locais dentro da herdade.
Essa sensação de controlo não me tirou a preocupação. Conhecendo cada canto e recanto, meti-me num jipe com o caseiro, fomos dar uma volta pela herdade para ver o estado das coisas, numa altura em que ardia de um lado e do outro da A13, que corta a herdade ao meio.
A meio da herdade, existe um túnel, contrapartida pela expropriação originada pela construção da A13 e que serve, além de acesso interno e privado, para a passagem do gado. Esse túnel está junto a uma pequena barragem, numa zona que, como todo o resto da herdade, tem vários socalcos. Com o portão aberto, para facultar a circulação dos bombeiros, passámos para o outro lado e vimos até onde pudemos ver.
O estado de pânico começou quando queríamos regressar a casa. Junto à barragem, começou uma nova frente de fogo, que praticamente nos cercou. Entre o mato e os sobreiros, formou-se uma parede que nos impediu de seguir em frente e nos forçou a alterar o trajeto.
Não era possível chegar a casa, nem às cocheiras, sem que tivéssemos de sair pelo segundo portão, seguindo pela Estrada Nacional, passando por fora da herdade. Foi o que fizemos.
Nesse momento, tudo de descontrolou. O que, à chegada, estava controlado e localizado ficou descontrolado, começando a adivinhar-se o pior. Foi nessa altura que, exaltado, saí do carro e tentei explicar aos bombeiros que o fogo estava a avançar por uma zona que, apesar de estar junto a uma vala cheia de água, estava seca. Se passasse daquele local, veríamos, dentro de minutos, o fogo tomar conta dos barracões, das cavalariças e da casa.
O meu aviso foi seguido, tendo-se formado um “muro de combate ao incêndio” que o impediu de se alastrar, evitando que chegasse à zona das cavalariças.
Nessa altura, avisei, também, que os socalcos existentes na zona, bem como algum mato (que não corresponde a qualquer incumprimento da lei e que, se fosse cortado, poderia matar vários sobreiros), fariam com que, se as chamas passassem daquele local, em minutos, a casa estivesse a arder.
Não havia tempo a perder. Pus-me no carro e, antes de ir a casa, fui ao parque junto à casa, que ainda não ardia, para soltar quatro poldros que ali estavam. Num instinto de sobrevivência, efetivamente milagroso, os poldros correram na minha direção logo os chamei, passando de um portão para o outro sem hesitar. Saíram daquele local em segundos, numa altura em que esse parque começou a ser consumido pelas chamas.
O tempo começava a escassear. Eu sabia que, em circunstâncias normais, dentro de três ou, com alguma sorte, quatro ou cinco minutos, a casa estaria a arder, sem que houvesse um único bombeiro no local.
Por sorte, era terça-feira. A Eugénia, que ali vai nesses dias da semana para limpar a casa, estava ali. Regou, com uma pequena mangueira, toda a zona junto à casa. Gritei, chamei os bombeiros para o local, abri todos os portões, fui até casa e liguei a rega.
À medida que acelerava a força devoradora de um fogo imensamente brutal, o tempo para o combater começava a tornar-se cada vez mais curto. Foi aí que, finalmente, mas com toda a calma, chegou a primeira de três ou quatro carrinhas de bombeiros.
Não é possível descrever os cinco minutos seguintes, porque não há explicação para o desespero. O ar ficou irrespirável, o calor insuportável, a casa foi assaltada por um gigantesco fumo cinzento. Uma chama quase me engoliu numa altura em que eu estava junto a um depósito de água situado atrás do balneário para onde me dirigi, a pedido dos bombeiros, para desligar a rega.
Confesso que não sei como é que a casa não ardeu. Não sei como é que os balneários ficaram intactos.
A determinada altura, a casa ficou sem água e sem eletricidade. Instintivamente, quando fui ligar a rega, abri a piscina (normalmente protegida por uma cobertura). Foi o que serviu para colmatar a falta de água dos carros de bombeiros, que se serviram daquela água para apagar o resto das chamas.
Num ápice, o fogo circundava toda a casa, desde os balneários à zona da piscina, passando pelas traseiras, pela casa do caseiro, a que se somaram pequenos focos de incêndio junto ao portão e ao relvado. Nessa altura, temi o pior. O fumo tornava impossível a visão de parte da casa. Os bombeiros recuaram e eu próprio, vomitando a desidratação que, entretanto, comecei a sentir, fui até casa buscar garrafas de água para os bombeiros. Fui até casa do caseiro, que tinha a porta aberta e estava mais fresca.
Nessa altura, começou a arder por trás dessa casa, chamei os bombeiros, que apagaram imediatamente aquele fogo. Entretanto, o incêndio tinha passado entre os barracões até ao fim da herdade, tendo consumido uma diagonal completa que arrasou sobreiros e centenas de espécies de seres vivos.
Aquela gigante nuvem negra transformou-se, entretanto, num conjunto disperso de nuvens cinzentas, graças a cerca de duzentos bombeiros, cinco tratoristas, o senhor Carlos, o senhor Leonel, o Luís, o senhor Zé Afonso e a Eugénia.
Não estando, ainda, completamente aliviado, nem tendo qualquer sentimento que se assemelhasse àquele que se tem em situações de controlo e de vitória, olhei à volta e, pelo menos com maior controlo sobre o meu estado de desespero, lembro-me de, entre ordens, ter abraçado o comandante dos Bombeiros do Cartaxo.
Em cada homem, em cada rapaz e rapariga, vi um herói. Entre lágrimas, a calma chegou, finalmente, aos homens exaustos, quando a noite chegou.
Passou uma semana desde esse incidente e, confesso, ainda hoje tenho dificuldades em dormir. Acordo sobressaltado a meio da noite. As pulsações ainda estão demasiadamente aceleradas para poder descansar.
No dia seguinte ao incêndio, no dia seguinte ao seguinte, nos dias seguintes a esse, dei sozinho várias voltas à herdade, não para fazer contas aos estragos, não para me deprimir no meio de um cenário que de paradisíaco se tornou lunar, mas para beber um pouco da força da resistência.
Ardeu metade da Formiga. Centenas de sobreiros ficaram queimados. O que era verde e amarelo ficou preto e cinzento. O cheiro fresco dos eucaliptos tornou-se pesado. O canto dos pássaros transformou-se num ruidoso e aflitivo silêncio. O cenário tornou-se desolador e penoso.
Penso que vivemos, os que estávamos na Formiga, uma espécie de guerra. E, numa guerra, até os vencedores perdem.
O que me fascina, na Formiga, é a biodiversidade. É a dignidade da vida dos toiros e das vacas. É a excelência e o carácter daqueles cavalos e poldros, a quem, com esforço e trabalho, dou de comer. É a sabedoria das corujas, a imponência dos milhafres, o passo desengonçado dos javalis, a rapidez dos coelhos, a ratice da raposa e a “rasteirice” dos saca-rabos, a pureza dos pássaros, a calma das cegonhas, o canto das rãs. É a história que cada sobreiro tem para contar.
É por isso que aquele local é único. É isso que me acalma do stress do quotidiano.
No último grande passeio que dei, dois dias após o fogo, com o cheiro das cinzas, e apesar de não me tirar o sentimento de algum pânico e sobressalto que ainda mantenho, senti a verdadeira força da natureza, da resistência perante o que foi a intensidade brutal de um mar devastador de fogo.
Fiquei com a esperança de que parte dos sobreiros ardidos ainda vai recuperar. Não acredito que a (Herdade da) Formiga tenha esse nome apenas por causa dos milhões de seres dessa espécie que, dia e noite, de verão a verão, ali trabalha para viver com dignidade.
Ali, todos somos formigas, inerentemente apaixonados pela vida, coligados num governo de salvação de toda a vida que pudermos salvaguardar.
Nesse dia, entre o trote do Puro Sangue Lusitano que montava e o galope desarticulado e rápido da Cão de Gado Transmontano que comprei no inverno passado, já ouvia, ainda que de forma envergonhada, o canto afinado dos pássaros. A mãe cegonha sobrevoava a várzea à procura de alimento para a cegonha bebé. O casal de milhafres voltou. As vacas, com os vitelos ainda novos, comem feno de forma digna e serena. Os cavalos estão calmos, pedem por passeios. Os poldros estão deitados junto aos novilhos e, entre eles, de forma sábia e matreira, está a raposa, numa altura em que os coelhos já saem da toca.
Pressinto que, entre todos aqueles animais, existe o medo que o faz estar juntos, mas a confiança de que, finalmente, a situação se está a normalizar.
Não temos qualquer sentimento de vitória. Mas o sentimento de derrota não se sobrepõe à imensa esperança de reerguer cada sobreiro, de revitalizar os sobreiros que, até à próxima primavera, tudo farão pela sobrevivência.
Temos, isso sim, conforto. Todos. Todos os que fomos, e somos, formigas. Todos os que, perante o maior susto da vida, tudo fizemos para salvar a vida uns dos outros.
A natureza, e a biodiversidade que cultivamos, sofreu apenas um duro e cruel revés, mas não há nada mais belo e mágico do que o pequeno conforto de sentir que a vida, naquilo que foi possível, resistiu.
Na tentativa de virar esta página, realmente negra da nossa vida, resta-me desejar que este dia seja recordado, não pelo que aconteceu, mas pelo que se evitou que acontecesse, e que nunca seria possível sem a ajuda das pessoas que referi, da solidariedade dos bombeiros, dos tratoristas da Companhia das Lezírias, da Proteção Civil, de cada bombeiro que ali esteve. Também não seria possível sem o instinto de sobrevivência de cada animal e sem a Sorte, a que apelei em desespero, e que veio dos Céus.
Tendo vivido a situação desde o momento em que o incêndio se descontrolou, e visto a forma como o fogo devorou toda a zona junto à casa, só posso acreditar que foi a Mãe que protegeu a vida que o Pai criou.
É só mesmo por causa disso que, cansado mas com esperança, posso finalmente dizer que o pior já passou, que tudo poderia ter sido muito pior, e que, com felicidade, podemos dizer que seguimos. Que seguimos, vivendo.

2 comentários:

Maria João Lopo de Carvalho disse...

valente António ! o que nao é de estranhar vindo de um LC de mão cheia! Parabéns! Temos escritor e temos amor à terra! assim é que é!!
MJLC

Maria João Lopo de Carvalho disse...

Parabens! Temos escritor e temos um valente amor à terra!! Vamos em frente ! o combarte segue!