terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Ermelinda


A Ermelinda (nome fictício) é uma pessoa humilde que deixou a sua terra perdida num norte deserto, entre a beleza das paisagens e a vida extremamente pobre das pessoas, para casar, trabalhar, dar uma vida de oportunidades à sua filha.

Não vive melhor do que viveria, se tivesse ficado. Fê-lo por amor e, sobretudo, pelo amor à sua filha. Vive numa moradia nos arredores de Lisboa, que talvez lhe faça lembrar o cantinho onde nasceu e onde passou a infância. Recebe pouco mais que o salário mínimo. Mas talvez não ganhe mais do que isso, se tivermos em conta as despesas que tem com o transporte e estacionamento para o local de trabalho.

A Ermelinda paga os seus impostos, todas as suas despesas. Passa mal para poder pagar as centenas de euros (duas, pelo que me disse) em manuais escolares para a filha.

É, repito, uma pessoa humilde. Humilde e trabalhadora. Por assim ser, tem muitas vezes razão naquilo que diz.

No outro dia fui falar com ela. Perguntei-lhe o que achava das medidas do Orçamento de Estado. Disse-me que eram mesmo muito duras. Aliás, a sua expressão mudou significativamente desde esse dia.

Nunca lhe perguntei se votava. Nunca lhe disse para ir votar. Nunca fiz, com ela, qualquer tipo de campanha. E nunca o fiz porque sempre tive a consciência de que ela, pelas dificuldades por que passou ao longo da vida, sempre quis, certamente mais do que eu, mudar para melhor.

Falei-lhe, para meter conversa, dos destaques que tinham acabado de passar nas televisões sobre as medidas: mais meia hora de trabalho diário, despedimentos de milhares de pessoas, cortes totais nos subsídios de férias, etc.! Falei-lhe ainda das consequências que essas medidas irão ter na economia e na vida das famílias. As pessoas vão viver pior.

Concordou comigo. Era, de facto, um cenário penoso. Para mim, para ela, para toda a gente. Mas acrescentou duas coisas: que alguns políticos, banqueiros e outras pessoas com poder na nossa economia deveriam ser responsabilizadas; que, acima de tudo, tinha medo dos assaltos e da criminalidade.

Confesso que estranhei.

Em primeiro lugar, porque a Ermelinda nunca tinha falado da responsabilização dos políticos. Mas não era só dos políticos. O que ela queria, e com legitimidade reforçada depois do anúncio das medidas, era a condenação de todos os que, criminosamente, arruinaram a nossa economia. Porque a Ermelinda trabalhou toda a vida, ela e o marido, para que a filha, pelo menos ela, pudesse ter uma vida com uma dignidade maior.

Em segundo lugar, porque sempre pensei nas dificuldades que os doentes irão ter na compra de medicamentos, que os pais irão ter para manter os filhos nas escolas, que as empresas vão sentir para se manter em actividade, que as famílias vão passar para sobreviver. Mas ela falava-me dos assaltos e da criminalidade que estava para chegar.

Também aí tinha toda a razão.

Uma pessoa aguenta as dores de barriga, pode esperar um pouco mais por uma operação, pode recorrer a métodos artesanais, pode passar fome para poder estudar, pode comer um pouco de pão que, com água, sobrevive. As empresas podem viver com aquilo que têm. Podem reinventar-se, assim como os desempregados. As pessoas podem acautelar-se nas alturas em que sabem que a justiça não funciona. Mas os assaltos (mais do que os cortes e os impostos) tiram-nos tudo aquilo que juntámos ao longo da vida. E, numa altura destas, não temos, de um ponto de vista factual, maneira de reaver o fruto do trabalho que nos é, ou pode ser, furtado ou roubado. A criminalidade tira-nos tudo. Pode, inclusivamente, tirar-nos a vida. E sem vida não há nada.

Hoje, junto à Universidade Católica, lembrei-me da Ermelinda porque vi um cenário nunca visto nos tempos da licenciatura nem no primeiro mês do mestrado. Havia uma série de automóveis com os vidros (do lugar do morto) partidos. O porta-luvas estava remexido. Em plena tarde, alguém tinha assaltado aqueles automóveis. Ganhei o dia quando vi os vidros do meu automóvel intactos.

Eu, um outro rapaz e uma rapariga ficámos incrédulos quando chegámos ao pé dos nossos automóveis e vimos aquilo. Porque a situação do país tinha chegado ao que acaba por ser o centro das nossas vidas. Estacionamos ali todos os dias. Vamos ali, pelo menos, cinco dias por semana.

Ligámos para a polícia, ninguém nos atendeu. Nem da polícia, nem da chamada de emergência.

Pode haver défice, dívida, cortes, sacrifícios, pobreza, miséria, fome. Mas tudo isso são causas. A criminalidade é a consequência. E, enquanto alguns "só sabiam da missa a metade", a Ermelinda já via o filme todo. Nesta conjuntura (de pobreza crescente), os primeiros problemas que assolarão país serão os assaltos e a criminalidade.

Pelos vistos, estão cada vez mais próximos de nós.

E atenção! Esta é só uma chamada de atenção para o tempo que aí vem.

Chegámos ao momento onde nunca pensámos chegar.

Será, certamente, o pior momento de todos aqueles que temos vida.

O alarme soou. O país parou. O Estado fechou.

Se fechou, o melhor é pôr trancas à portas.

Não vão por mim. Vão por ela. Porque ela, pelas batalhas que disputa diariamente desde que nasceu, é que conhece o seu mundo, o seu país. Conhece-o melhor que ninguém. Não é velha, mas é das antigas.

E, como é das antigas, é normalmente ela que tem sempre razão.

Esta história é só uma prova disso.



Nota: Exceptuando o nome, todo o resto desta histórica é rigorosamente real.

1 comentário:

maria disse...

A Ermelinda está cheia de razão, pena que ninguém a oiça e leve a sério :(

Também tenho medo que a criminalidade e o vandalismo aumentem...uns irão fazê-lo por necessidade, outros apenas porque sim, principalmente por inveja...

Boa sorte e bjs :)