quinta-feira, 24 de junho de 2010

O dia-a-dia


Na rua onde eu moro vivem milhares de pessoas. Estudantes, crianças, trabalhadores, reformados. Gente de quase todas as profissões. E com diferentes estatutos sociais.
Na rua onde eu moro trabalham algumas centenas de pessoas.
Mas, se hoje falo da minha rua, é porque a minha rua espelha bem a realidade do país.
O minimercado é constantemente assaltado. Como também já foi assaltado o cabeleireiro e a papelaria.
O senhor da loja de antiguidades, instalado numa fracção arrendada há já muito tempo, fechou a loja.
A papelaria já vai no seu terceiro dono em pouco mais de dois anos. Agora, além de papelaria, é um sapateiro.
A loja de informática, que existia desde que me lembro, fechou no princípio do ano.
A loja dos móveis, que mantinha sempre a luz de presença acesa durante a noite, continua aberta, mas fechou a luz. Entre um assalto e a factura da luz, a vendedora preferiu apagar a luz.
Nestes últimos tempos, o ginásio de artes marciais fechou. Onde este funcionava, está uma porta, sem nada lá dentro.
Entretanto, abriu outro, empolgado pelas obras de melhoramento do campo de futebol. Mas, porventura por falta de clientela e pela escassez de dinheiro para pagar aos vários postos de trabalho de criou, reduziu, há dias, o seu período de abertura.
Nesta rua vivem pessoas com diferentes estatutos sociais, com um poderio económico também diferente. Os móveis colocados nos lixos, tal como as roupas, são apanhados em poucos minutos. Vive-se uma autêntica caça ao lixo. Em que ganha aquele que for o primeiro a apanhar.
Antes deste período, muitas lojas passaram a ser…bancos. E todos saberemos bem porquê. Nesta rua existem quatro ou cinco bancos, mais aquele estabelecimento que, aproveitando-se da difícil situação das famílias, vai ficando com o seu ouro.
Falo desta rua porque esta rua faz parte do dia-a-dia de muita gente. E porque espelha uma realidade que já não se consegue esconder. Mesmo tratando-se do concelho mais rico do país, não deixam de ser visíveis os sinais crescentes da pobreza, que aquele senhor, por dormir diariamente, de há uns tempos para cá, num automóvel branco estacionado em segunda fila, confirma.
A gente desta rua, que sai manhã cedo para deixar os filhos na escola e para ir trabalhar, que abre as portas aos fregueses logo pela manhã, muitas vezes precisa do Estado.
Precisa do Estado, por exemplo, quando tem um incêndio ou precisa de uma ambulância. Precisa de ligar a chamar uns bombeiros que, mesmo sendo voluntários, não deixam de ter uma dívida até à ponta do cabelo. E que, estando instalados mesmo no fim da rua, por vezes não têm meios para atender a pedidos urgentes….em tempo útil.
Precisa do Estado, por exemplo, quando vê o seu filho ser assaltado (facto que acontece com alguma frequência, ali para o pé da escola) ou quando vê um cliente entrar no seu estabelecimento, pegar em produtos e sair sem pagar. Ou quando quer fazer uma queixa. A polícia aqui, apesar do seu esforço notório e organização, não tem meios suficientes para garantir direitos da quantidade de gente que aqui vive ou trabalha.
Precisa do Estado, por exemplo, quando tem problemas de saúde. E aí sejamos sérios. Deixemo-nos do politicamente correcto: quem tem problemas de saúde e tem dinheiro recorre, em primeiro lugar, ao sector privado. A desorganização e tempo de espera, aliado algumas vezes à ineficácia do serviço nacional de saúde não deixa margem para outra solução.
Precisa do Estado para resolver conflitos. Mas a Justiça não é célere, vai começando a revelar sinais de incompetência e não consegue acudir a quem chama por ela.
O dia-a-dia desta gente vai além desta rua. Passa por um conjunto de estradas degradadas que danificam os automóveis comprados pela força do seu trabalho. Passa também pelas burocracias que obrigam as pessoas a tirar senhas, ficar à espera, perder uma manhã ou um dia inteiro de trabalho, para cumprir um dever que têm para com o Estado.
Esta é a realidade. De muita, muita gente, cada vez mais.
E quem vive esta realidade, quem trabalha nela ou simplesmente passeia por ela, sente-se desolado quando, à hora do jantar, vê os políticos discutirem novas obras públicas, anunciarem novos sacrifícios e debaterem assuntos que não interessam “ao caracol”.
É assim nesta rua. Como também será em todas as ruas deste país. Felizmente vai havendo futebol para ver, cães para passear, sol para bronzear, Igrejas para rezar, matéria para estudar, livros para ler, filmes para ver, telenovelas para entreter. E, pelo sim, pelo não, já tudo serve para contornar a depressão.

8 comentários:

Anónimo disse...

Sempre no mesmo discurso pessimista e culpabilizador. é vira o disco e toca o mesmo...

Anónimo disse...

epá nao devias escrever isto que isto ainda deprime mais as pessoas.
realmente isto anda um vergonha do caraças. têm que ser tomadas medidas, malta jovem, séria, inteligente e com vontade tem que pegar nesta m.... de país!

Anónimo disse...

Não acho que este seja um discurso pessimista como também não acho que Paulo Rangel e Ferreira Leite tenham sido profetas da desgraça. Vivo em Lisboa mas cresci em Santo Tirso até vir para a Faculdade. Na minha zona de Santo Tirso fechou o talho que já existia quando os meus pais compraram a casa, a mercearia do senhor Joaquim que ali funcionava desde gerações antigas e esse é o retrato do país real.
O Estado? Falhou!
As pessoas? Estão mais pobres!
As PMEs? Estão a fechar!
O que vemos é cada vez mais é que os governos vivem numa realidade virtual, desligados dos problemas do dia-a-dia.
Se reparares António foi este discurso intimista e de proximidade que fez com que Obama fosse eleito Presidente dos EUA.
A nossa geração é a única que não cresceu em berços de ouro, que não vai poder viver acima das suas possibilidades e que é constantemente fustigada pelas gerações mais antigas com actos que agravam ainda mais a nossa situação (que foram eles que criaram) e que farão muitos de nós ir lá para fora.
Essa é a realidade e há muitos portugueses a atentarem constantemente contra o país real.
Os políticos deviam estar mais atentos às pessoas e as pessoas deveriam exigir que os políticos falassem da realidade.
O país está péssimo aqui em Lisboa mas vão a Rebordões, a São Martinho do Campo, a qualquer sítio escondido por esse norte. Não é vira o disco e toca o mesmo porque este é o disco que deve tocar para os políticos e para os imbecis que aqui vêm numa lógica botabaixista.

Orlando Silva

João Santos disse...

Não é um discurso pessimista, é realista. O Estado não existe, a não ser para cobrar impostos.

Faz-me lembrar os textos de Paulo Osório, um hispâno-romano que viu o fim do império, destruido por dentro e invadido por bárbaros. O que ele descreve é bastante parecido com o final do império romano do ocidente.

E não esqueçam: o saque de Roma não foi feito pelos Godos, foi FEITO PELA POPULAÇA DO IMPÉRIO, QUE SE VINGOU.

Humberto disse...

Provavelmente o melhor texto que já li neste blogue!

maria disse...

Grande texto :)

E infelizmente não é pessimista, é muito realista...

O primeiro anónimo só pode pertencer ao governo para achar que o seu discurso é pessimista...são os únicos que ainda acham que isto está bem e no bom caminho...e só não dizem agora que a culpa é do outro governo, porque o outro governo eram eles também..

Bjs :)

Anónimo disse...

Na minha rua existem 3 moradias (modestas, sem grandes riquezas). Na minha rua não há alcatrão mas há e de sobra ar puro, a cor verde predomina e á noite temos o melhor e mais lindo céu que existe. Na minha rua por vezes esquecemos de tirar a chave da porta ou do carro e até hoje (graças a Deus) nunca fomos assaltados. Na minha rua a banda sonora de dia é de passaros a cantar, e á noite são os grilos, as rãs, as cigarras....mas querem saber o curioso? Pouca gente das vossas ruas (daquelas ruas que são descritas neste post) quer vir morar para a minha rua. Quando eu conto a alguém das vossas ruas que moro nesta minha rua, gozam comigo chamam-me de bimba e serrana. Gozam com o sotaque da minha gente e com o seu modo de vida. Porque eles sim são os maiores. Têm bons empregos, boas casas, mas no fundo são pobres, muito mais pobres do que eu. Tenho um emprego modesto, os meus vizinhos são modestos, a minha rua é modesta....mas sou feliz e senti-me a pessoa mais rica do mundo quando li este post.
Ass: Leoa Ferrenha...das beiras!!!

António Lopes da Costa disse...

Primeiro anónimo, será, sem dúvida, um discurso culpabilizador. É que, seja qual for a rua, quando ligamos a televisão à hora do jantar, parece que não há culpados.

Segundo anónimo, é verdade. Talvez não devesse ter escrito. Mas é bom que, de vez em quando, quem tem responsabilidades ponha os olhos na realidade.

Orlando, muito disse no que escreveu: desde Obama a Santo Tirso. Quanto ao resto, é importante mudar as caras, mudar as políticas, mudar os paradigmas. Fica, também, feito o convite para que as pessoas vão visitar Santo Tirso e as localidades referidas, como forma de incentivar o turismo regional.

João Santos, é importante que o Estado defina aquilo para o qual existe. E isso começará, na minha opinião, com a própria revisão constitucional. Quanto ao resto, o povo dirá de sua justiça quando começar a sentir a realidade.

Humberto, agradeço-lhe o elogio. Elogios, como críticas, enriquecem os seus destinatários.

Maria, que sorte que é a sua. Confesso-lhe um sonho que tenho de, um dia, ter uma vida semelhante à sua. É cada vez mais importante que se puxe também pelo desenvolvimento do interior e do mundo rural, pela diminuição das assimetrias regionais e pela manutenção de um Portugal que morre de dia para dia...

Beijinhos e abraços