terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Filosofia da Justiça


Antes de filosofarmos um pouco sobre a Justiça portuguesa, importa fazer uma breve contextualização, uma síntese que seja capaz de descrever a actualidade da Justiça, enquanto sector, e não o Direito enquanto meio.
Para sermos breves, poderemos descrever a Justiça com a interpretação literal da palavra caos. A Justiça em Portugal está um caos.
Os advogados estão contra os juízes, os juízes estão contra os políticos e os políticos, que têm medo dos juízes, são, muitas vezes infundadamente, perseguidos pelo Ministério Público.
Neste contexto, a pergunta que um “filósofo da Justiça”, e não um filósofo do Direito, deverá colocar é: como será possível, nestas condições, a Justiça funcionar?
Aquilo a que chamo de caos encontra uma primeira solução em Aristóteles que merece justa recordação. Além de ficar para a História como o primeiro homem conhecido que falou de uma lógica de justiça distributiva e, por isso, nele foi formado o embrião do Estado Social, Aristóteles propunha ainda uma separação dos poderes (o poder deliberativo, o poder executivo e o poder judicial).
Portugal acolheu essa teoria filosófica, aprofundada posteriormente por vários autores, sobre a organização do Estado, acolhida por uma ideia primeiramente lançada por Hobbes, prosseguida e sustentada posteriormente por autores como Rousseau e Kelsen: a Constituição.
Na actualidade, a filosofia do Direito remete-nos para uma teoria de “jurisprudência dos princípios”. E talvez fosse útil, num contexto político, concretizar a ideia aristotélica numa lógica de Filosofia da Justiça, onde a Justiça pudesse ser verdadeiramente livre, verdadeiramente independente, mas também verdadeiramente imparcial. Faz sentido que, ao mesmo tempo que a corrente filosófico-jurídica tende para uma jurisprudência dos princípios, a filosofia para a Justiça acolha semelhante ideal, colocando o princípio da separação dos poderes acima de todas as outras normas, acima de todos os outros interesses, pessoais, de grupo ou partidários.
Aqui nasce uma questão que merecerá, sem dúvida, ser deixada para os filósofos do Direito. Se o princípio existe, se está consagrado constitucionalmente, como é que se explica que a separação dos poderes, princípio basilar num Estado de Direito, seja como uma espécie de mito ou uma utopia que não se consegue concretizar?
Uma vez mais teremos de recorrer à Antiguidade Grega, onde Platão, ainda que por um método despido de sentido democrático, construía um mundo inteligível, ou das ideias. O Direito estava nesse mundo, que partilhava com o fim que dava razão à sua existência: a justiça. Platão projectou um processo educativo completo, que não era igual para todos, mas que permitia a um grupo restrito de cidadãos ser mais competente, mais qualificado para poder administrar a justiça em nome do povo.
Ainda num contexto de que o mais qualificado estará mais perto da Verdade (colocada, por Platão, no mundo das ideias), Platão desenhou toda uma teoria que girava em torno da ideia de um rei filósofo: o mais competente deveria governar.
Eu não sei qual é o grau de qualificação de quem administra a Justiça mas posso, olhando para os factos e para o cenário actual da justiça portuguesa, concluir que o político, por regra, não tem sido suficientemente sábio. Nem o político, nem o legislador, nem todos os responsáveis pelos debates políticos e legislativos que se fazem democraticamente em Portugal, pelo menos em comparação com a sabedoria dos homens que fizeram nascer o conceito de democracia, há já mais de dois milénios.
Mas mais de dois milénios depois deveremos sentir a vergonha de ter regredido no que toca à filosofia da Justiça. Não a temos encarado como algo essencial. Temo-la olhado como um fim do Direito quando a deveríamos olhar como um meio para um Estado política e judicialmente organizado de modo a, pelo menos, funcionar.
Estamos já num caminho diferente, precisamente oposto ao que vinha sendo seguido, por exemplo, em França na transição do absolutismo para o liberalismo em período de revolução francesa. Hoje, precisamente ao contrário desse tempo, é a Justiça que “domina” o poder político. Não o faz de um ponto de vista organizacional, assumindo-se como parte cimeira de uma hierarquia que, mais abaixo, tem o poder político.
Agora, o meio para a confusão dos poderes é diferente.
E nunca, como agora, desde que há registos históricos, a Justiça influenciou tanto a realidade política em Portugal. Deixou de ter a imparcialidade que Aristóteles lhe antevia, deixou de ser vista como um fim para passar a ser um meio, um instrumento político, e, por isso, mesmo que exista o princípio (da separação dos poderes) e que o mesmo esteja consagrado constitucionalmente, isso não quer necessariamente dizer que esse princípio se concretize factualmente.
Podemos interpretar esta realidade como algo que põe em causa a teoria que defende uma “jurisprudência dos princípios”, que é a que vinga, neste momento, ao nível da Filosofia do Direito. Mas a filosofia do Direito pretende filosofar o Direito, e não a Justiça.
Porque, em Portugal, duvido que haja sequer uma filosofia da Justiça. E só por não haver se justifica que a Justiça seja, neste momento, um verdadeiro caos. Basta olhar para os seus protagonistas para percebermos a dimensão do caos e da confusão que existe entre os poderes.
Boa parte das intervenções públicas do Bastonário da Ordem dos Advogados são discursos políticos. O Ministério Público, consigo empurrando (algumas vezes) alguns juízes, é a maior arma política que existe em Portugal. Os calendários judiciais têm uma agenda que é política. E os políticos, que estão tão longe de ter as qualificações exigidas por Platão, esses coitados, andam a investigar-se uns aos outros. Depois, o povo julga. E quem sai condenado tem sido sempre Portugal.

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