quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Eles não sabem que vão morrer."


A frase não é minha. É do Miguel Falabella, actor brasileiro, e foi lembrada pelo Joaquim Monchique numa entrevista dada ao Daniel Oliveira, transmitida na SIC depois do almoço de sábado passado.
As frases mexem connosco, inspiram-nos, fazem-nos pensar. E aquela, naquele contexto, fez-me pensar na realização plena de um ser humano, que é poder responder com certeza às duas maiores incertezas, que são o sentido da vida e a própria morte.
Pois é. O "eles não sabem que vão morrer" é um dos meus lemas de vida, que acolhi há não muito tempo. Porque a vida é curta para deixar o sonho para amanhã. Para amanhã, em vez do sonho, deixe-se o sono. E faça-se hoje o trabalho, faça-se hoje o caminho, faça-se hoje tudo o que for possível fazer.
Com o privilégio que temos em estar de passagem, não podemos deixar as coisas para depois, para o depois. Depois da vida, os sonhos que tínhamos em vida tornam-se impossíveis.
Não fazia sentido deixar de falar naquela citação, sobretudo neste dia em que o país se despede de um rapaz de 28 anos, num acidente causado pelos riscos que são próprios da utilização de um automóvel. Bastou algo com a pequenez de um furo no pneu, algo completamente fortuito, momentâneo e, por isso também, injusto para que Angélico Vieira praticamente perdesse a possibilidade de estar vivo.
Aconteceu ao Angélico Vieira mas, no ano passado, uma pessoa minha conhecida, num acidente igual foi projectada 30 metros. O carro ficou desfeito. Foi operada, sobreviveu. A luz não se apagou para ela, nem para as outras que seguiam consigo. Está viva e de boa saúde. Mas são coisas que acontecem, que nos podem acontecer amanhã. Ou podem acontecer-nos depois. Ou podem-nos acontecer coisas diferentes. Dependemos praticamente apenas da nossa sorte.
E sim, uma vez mais, eles não sabem que vão morrer.
Mas Angélico, que morreu, talvez soubesse.
Havia quem gostasse dele, havia quem não gostasse. Eu, pessoalmente, não era propriamente um fã, sobretudo, das suas músicas. Era uma questão de estilo, uma questão de gosto, uma questão de diferença. Respeitava, isso sim, o seu empenho, o seu trabalho, a forma como conseguiu subir na vida.
Gostasse-se ou não, o Angélico Vieira era um rapaz digno. Que, ao contrário de outros, não abusava de menores, não praticava crimes sexuais, era normal porque queria ser normal, mas famoso porque lutou para ser famoso. E era famoso. E é famoso. E deve estar feliz por estar a ver as fãs a despedirem-se. Merecia e merece isso.
O exemplo que dei, bem real, presente e doloroso, tem tudo a ver com a frase do Miguel Falabella que intitula este texto.
Nós não temos sempre de falar das mesmas coisas. Não temos também de nos render ao que está a ser falado. Mas temos o dever de puxar destes exemplos para reflectir, para fazer reflectir os outros, os outros que sonham, os outros que adiam os sonhos, os outros que se rendem ao conformismo em vez de trabalharem com afinco para se poderem sentir definitivamente realizados no momento de dizer "adeus".
A vida são dois dias. E um homem, para ser pleno, tem de conjugar o sofrimento com o trabalho e a esperança. Um homem, para se concretizar, tem de sonhar, tem de seguir os sonhos.
Não sejamos hipócritas connosco próprios e saibamos dizer que todos vamos morrer um dia. Saibamos perceber isso.
No dia em que todos percebermos isso, meio mundo vai deixar de apenas dizer mal do outro e a outra metade vai perceber a insignificância dos seus problemas acessórios e supérfluos.
Quem já percebeu que vai morrer, que continue a puxar pela cabeça, a sacrificar o corpo, a materializar projectos. Quem só agora começa a perceber, pense na oportunidade de ouro que tem ao ter o leme de uma vida, cujo rumo pode ser sempre alterado.
Até que se prove com toda a certeza o contrário, esta é uma oportunidade única. Ou a única oportunidade. É bem possível que a oportunidade deixe de existir no momento, no instante, do "click". Não sabendo quando vai acontecer, sabemos com a certeza absoluta que vai chegar.
Eles, que não sabem que vão morrer, são falhados. A vida foi uma passagem para eles. Mas não a viveram. E, por isso, não conseguiram ser felizes. Viveram tudo só a metade porque só viram o sofrimento e não viram a esperança nem o sonho. E não quiseram ver o trabalho. Foram "meios-homens".
Depois desta reflexão, que já é, de certa forma, a homenagem possível, não poderia deixar de terminar referindo-me a um homem pleno, merecedor do Descanso Eterno, que hoje partiu, e do qual me despeço com um "até sempre, Angélico Vieira".

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